As Raízes Iniciáticas dos Direitos Humanos: uma jornada pela dignidade humana
Por Diego de Almeida
Quando ouvimos falar em “direitos humanos”, quase sempre pensamos em documentos modernos: a Declaração de 1948 da ONU, a Constituição de nossos países ou as lutas contemporâneas por igualdade. Mas, se olharmos com mais atenção, perceberemos que a história desses direitos começa muito antes. Na verdade, ela nasce de uma intuição profunda: a de que há algo em cada ser humano que é sagrado, inviolável, e que não pode ser ferido sem que toda a comunidade seja ferida.
Essa percepção, que poderíamos chamar de espiritual ou iniciática, acompanha a humanidade desde os primórdios. E é justamente essa viagem que convido você a fazer agora: um passeio pelas raízes iniciáticas dos direitos humanos, partindo do Egito Antigo e chegando ao Iluminismo, passando por tradições religiosas, filosóficas e, claro, pela Maçonaria, que há séculos cultiva e transmite esses valores de dignidade, liberdade, igualdade e fraternidade.
Por que falar em “raízes iniciáticas”?
Quando usamos a expressão “raízes iniciáticas”, não estamos dizendo que os direitos humanos nasceram de um único rito ou de uma única instituição. Estamos, antes, reconhecendo que essas ideias surgiram de um chamado profundo da consciência humana.
Esse chamado pode aparecer como mito, como lei gravada em pedra, como oração ou como filosofia. Mais tarde, se transforma em ciência política e, por fim, em declarações formais de direitos. O fio condutor é sempre o mesmo: a busca por afirmar que a vida humana possui valor em si mesma, e que nenhum poder pode negar essa verdade sem trair a própria humanidade.
Do ponto de vista maçônico, isso faz todo sentido. Afinal, a iniciação nos ensina a ver no outro um irmão, uma irmã, alguém que compartilha conosco a mesma centelha sagrada. Não é à toa que os maçons sempre se preocuparam em cultivar a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Antiguidade: de Maat ao jus naturale
Na Antiguidade encontramos alguns dos primeiros registros dessa intuição.
No Egito, a deusa Maat era símbolo da ordem, da justiça e da verdade. A famosa cena do julgamento dos mortos, em que o coração do falecido era pesado diante da pena de Maat, mostra uma noção central: nossas escolhas têm consequências não apenas para nós, mas para o equilíbrio de todo o cosmos. Ética, aqui, não era conveniência — era estrutura.
Na Mesopotâmia, o Código de Hamurabi (c. 1750 a.C.) introduziu o princípio de que a lei deve ser pública e previsível. Isso limitava o arbítrio do governante e dava um mínimo de segurança às pessoas. Ainda que imperfeita, foi uma semente do que hoje chamamos de império da lei.
A Carta de Ciro, de 539 a.C., proclamava liberdade religiosa e respeito aos povos conquistados. Gravada em argila, ela ecoa até hoje como uma espécie de “proto-declaração de direitos”.
Na Grécia, Clístenes introduziu a palavra isonomia — igualdade perante a lei. Claro, restrita a homens livres e cidadãos, mas já era um primeiro passo para reconhecer que a justiça precisa valer para todos os iguais.
Em Roma, surgem conceitos que nos são muito familiares: o jus civile (direito dos cidadãos), o jus gentium (direito aplicado a todos os povos) e o jus naturale (um direito da própria natureza humana, acima dos caprichos de qualquer governante). Aqui começamos a ver a ideia de universalidade tomando forma.
Esses exemplos mostram que, mesmo com todas as limitações históricas, já se percebia que a dignidade humana tinha algo de intocável, quase sagrado.
Espiritualidades que humanizam
Se avançarmos alguns séculos, veremos que as grandes tradições espirituais reforçaram esse chamado.
-
No Judaísmo, encontramos a noção de Tselem Elohim: todo ser humano é criado à imagem de Deus. Ferir o próximo é ferir a própria Criação.
-
No Cristianismo, ecoa o mandamento “amai-vos uns aos outros” (João 13:34). Essa não é apenas uma regra de convivência: é o reconhecimento de que o amor ao próximo é fundamento de toda justiça.
-
No Islamismo, a justiça (adala) é um dever espiritual, e o cuidado com os órfãos e pobres é sagrado. A comunidade é chamada a ser modelo de equidade.
-
No Hinduísmo e no Budismo, a compaixão universal e a interdependência de todos os seres mostram que aquilo que fazemos ao outro, fazemos também a nós mesmos.
Séculos antes da linguagem dos direitos, já se falava a linguagem da responsabilidade. E essa visão é profundamente iniciática: lapidar a si mesmo é também cuidar do mundo.
Filosofia, esoterismo e humanismo
A filosofia também deu contribuições decisivas. Os estoicos defendiam o cosmopolitismo: somos todos cidadãos do mundo, e a dor do outro nos diz respeito. Suas virtudes cardeais — sabedoria, justiça, coragem e temperança — ecoam até hoje nas virtudes maçônicas.
Durante o Renascimento, o Humanismo colocou o ser humano no centro da reflexão, sem abandonar a transcendência. Essa mudança cultural abriu caminho para o Iluminismo, que levou a discussão para a praça pública, transformando ideias em instituições.
Na linguagem maçônica, é como se a “luz” que antes iluminava o interior do iniciado passasse a brilhar também nas cidades, inspirando mudanças sociais.
Iluminismo: quando os direitos ganham papel e selo
O século XVIII foi decisivo.
John Locke defendeu os direitos naturais — vida, liberdade e propriedade — como anteriores ao Estado. Montesquieu mostrou que a liberdade depende de instituições sólidas, com separação de poderes. Rousseau proclamou que a soberania é inalienável e que ninguém pode renunciar à própria liberdade.
Essas ideias ganharam corpo em documentos históricos:
-
1776: Declaração de Independência dos EUA, que fala em vida, liberdade e busca da felicidade.
-
1789: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que afirma que todos nascem livres e iguais em direitos.
Esses textos se tornaram referência mundial. Porém, também revelaram contradições: escravizados, indígenas e mulheres não eram incluídos. Olympe de Gouges denunciou essa exclusão em 1791, ao publicar a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, abrindo caminho para os movimentos feministas e sufragistas.
Aqui a Maçonaria aparece de forma muito concreta: muitas das ideias iluministas foram discutidas em Lojas, e vários protagonistas dessas revoluções eram maçons. O lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade saiu do emblema e foi para as ruas.
A Maçonaria como guardiã da dignidade
A Ordem não criou os direitos humanos, mas sempre os cultivou. Ao colocar lado a lado pessoas de diferentes origens, a Maçonaria ensina a fraternidade na prática. Ao defender a liberdade de consciência, prepara o terreno para o florescimento da justiça.
E ao equilibrar liberdade e igualdade com o fiel da fraternidade, ensina que não há caminho justo sem harmonia. Liberdade sem igualdade vira privilégio. Igualdade sem liberdade vira tirania. Só a fraternidade garante o equilíbrio.
Na Europa dos séculos XVIII e XIX, as Lojas eram espaços de debate filosófico, científico e político. Nelas se aprendia não apenas a teoria, mas também a prática da convivência entre diferentes.
Le Droit Humain: igualdade no rito
Em 1893, na França, Maria Deraismes e George Martin fundaram a Ordem Maçônica Mista Internacional Le Droit Humain. Foi um gesto ousado: num tempo em que a Maçonaria era quase totalmente masculina, eles afirmaram que mulheres e homens são igualmente dignos da iniciação.
Essa Ordem, hoje presente em diversos países, celebrou recentemente seus 130 anos. Mais do que uma instituição, ela é um testemunho vivo de que igualdade não pode ser apenas discurso: precisa ser traduzida em rito, em prática e em vida.
O desafio que a Le Droit Humain coloca para todos nós é claro: como tornar coerente aquilo que pregamos em palavras? Como viver, no cotidiano da Loja e fora dela, a igualdade e a fraternidade que proclamamos?
Direitos humanos: obra em construção
Ao percorrer essa estrada — do Egito ao Iluminismo, passando pela Maçonaria moderna — percebemos que os direitos humanos são sempre processo, nunca produto acabado. Há avanços e retrocessos, inclusões e exclusões.
Cada marco histórico — o Código de Hamurabi, a Carta de Ciro, a isonomia grega, o jus naturale romano, o Iluminismo, Olympe de Gouges, a fundação da Le Droit Humain — é uma pedra que se assenta no Templo da Humanidade. Mas o edifício ainda está em construção.
Como maçons, temos a responsabilidade de continuar essa obra. Não apenas com discursos ou textos, mas com práticas de acolhimento, projetos sociais, apoio à educação, à cultura, ao diálogo inter-religioso e à defesa dos mais vulneráveis.
Cada vez que uma Loja se abre à comunidade, cada vez que promove conhecimento, solidariedade e justiça, está ajudando a erguer esse templo invisível, sustentado por três colunas universais: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Conclusão: três passos para o presente
Talvez possamos resumir toda essa reflexão em três passos simples:
-
Recordar: a memória histórica é bússola. Cada conquista — de 1215 a 1948, de Maat a Le Droit Humain — nos lembra que nada é dado de presente, tudo é fruto de lutas e de coragem.
-
Reconhecer: ainda hoje existem exclusões e injustiças que exigem nossa atenção. É preciso reconhecer que os direitos humanos não estão plenamente realizados.
-
Responder: o verdadeiro compromisso começa em pequenos gestos — em casa, no trabalho, na Loja, na rua. Direitos humanos se constroem no cotidiano, em cada ato de justiça, em cada palavra de respeito, em cada porta que se abre.
O Templo da Humanidade segue em obras. Cada direito conquistado é um tijolo assentado. Cada vida protegida é uma lâmpada acesa. E cada iniciado, homem ou mulher, que ajusta o seu prumo contribui para que essa construção avance.
Que possamos, então, carregar sempre conosco — e traduzir em atos — as palavras que formam a mais bela herança maçônica e humana: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário