terça-feira, 11 de novembro de 2025

A GERAÇÃO SANDUÍCHE

 


GERAÇÃO SANDUÍCHE

Por Diego de Almeida

Meus caros, não sei se vocês já ouviram falar da tal “geração sanduíche”. Pois bem, se não ouviram, eu explico: somos nós — os que estamos espremidos entre duas fatias de responsabilidade. De um lado, os filhos que não saem de casa; do outro, os pais que já não conseguem ficar sozinhos. E, no meio disso tudo, nós — o recheio, tentando manter o sabor da vida sem desmoronar o pão.

Entrementes, percebo que o mundo mudou de tal maneira que as fronteiras entre juventude e maturidade se borraram. Os filhos cresceram, mas não foram. Permanecem em seus quartos, conectados ao mundo, produtivos (às vezes), mas ainda dependentes, adiando o voo solo como quem teme as turbulências da vida adulta. Já os pais, que um dia foram o porto seguro, agora precisam que lhes seguremos a mão — não só para atravessar a rua, mas também para navegar pelas telas dos celulares e pelas confusões do tempo moderno.

E cá estamos nós, com as costas arqueadas de tanto empurrar o mundo pra frente e puxar o passado para perto. Administramos planilhas, remédios, boletos e emoções. Falamos com o filho sobre ansiedade, namoro e emprego, e logo em seguida explicamos à mãe por que o micro-ondas “não quer funcionar” (quando o problema é que ela esqueceu de apertar o start). Entre uma consulta médica e uma reunião de trabalho, ainda buscamos tempo — e forças — para preparar a sopa do pai e revisar o currículo do filho.

Mas, como se não bastasse, a vida ainda nos faz estreitar o sanduíche. Porque os filhos que não foram acabam nos trazendo os netos que ficam — e lá estamos nós, outra vez, trocando fraldas, contando histórias e aquecendo mamadeiras, como se o tempo tivesse dado uma volta completa e nos devolvido ao ponto de partida. Amamos esses pequenos com a ternura multiplicada dos anos, mas não sem a fadiga acumulada das décadas.

E há o medo — ah, o medo que não confessamos. O medo de adoecer. Medo de parar, de falhar, de cair de cama e perceber que, sem nós, tudo desanda. Somos a geração que acredita não ter o direito de ficar doente, porque há sempre alguém que precisa de nós: o pai, a mãe, o filho, o neto… O mundo parece girar sobre os nossos ombros, e a simples ideia de deixá-lo cair causa mais pavor do que a própria doença.

Ainda assim, há dias em que o corpo pede trégua e a alma, repouso. Dias em que queremos apenas fechar os olhos e deixar que o tempo cuide de tudo por algumas horas. Mas logo vem a consciência — aquela que não dá folga — sussurrando: “Quem vai cuidar dos outros, se você faltar?” E então engolimos o cansaço com o café morno e seguimos em frente, porque alguém precisa continuar segurando o pão.

Mas, ao fim da noite, quando vejo meus pais confortáveis, meus filhos a salvo e meus netos dormindo tranquilos, entendo que este é o preço — e também o privilégio — de estar no meio. Fomos cuidados para cuidar; amados para amar. E, ainda que o sanduíche pareça apertado demais, é nele que se encontram as camadas mais ricas da vida: o passado que ensinou, o presente que exige e o futuro que depende de nós.

Aos da geração sanduíche, meus respeitos e minha solidariedade. Que tenhamos sempre a força para segurar o pão sem deixar cair o recheio — e, quem sabe, um dia, a coragem de também descansar o prato.

Abraços Fraternos

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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Entre Picarões e Charlaretas



 

Entre Picarões e Charlaretas

Por Diego de Almeida

Tem dias em que a medicina parece menos a nobre arte de cuidar de gente e mais um mercado persa: tem de tudo, para todos os gostos, com promessa de milagre em 7 dias ou seu dinheiro de volta. No meio desse cenário, desfilam os “picarões” e os “charlaretas” – nossa brincadeira com picaretas e charlatões –, que vão ocupando espaço, vestindo jaleco, gravando Reels e empilhando seguidores, enquanto o velho compromisso com ciência, formação sólida e ética vai ficando num cantinho, meio esquecido, como aquele livro importante que a gente deixa de ler para assistir mais um vídeo curtinho no celular.

A medicina sempre teve seu lado comercial, não sejamos ingênuos. Mas havia, pelo menos em tese, uma espécie de “contrato moral”: primeiro, o paciente; depois, o resto. O diagnóstico vinha antes do orçamento, o prontuário antes da planilha, a anamnese antes do “pacote premium”. Só que, de uns anos para cá, a coisa virou. Em vez de discretos consultórios, brotam “institutos”, “centros avançados”, “hubs de saúde integrativa”, todos com logotipo chique, wi-fi potente, café gourmet e, naturalmente, algum pacote irresistível de procedimentos. A impressão é que, para muitos, o paciente virou cliente; o atendimento, produto; e a saúde, um nicho de mercado em expansão como qualquer outro.

Nesse caldo, o problema da má formação cai como uma luva. Nunca se abriu tanta vaga em curso da área da saúde. Formam-se médicos, mas também enxurradas de outros profissionais – o que em si não é ruim, pelo contrário. O problema é quando quantidade passa a ser confundida com qualidade. O sujeito sai da graduação cambaleando na propedêutica básica, mas em poucos meses já está oferecendo “protocolo exclusivo” de não sei o quê, com uma segurança que faria inveja a qualquer professor titular de quatro décadas de carreira. E se questionar, ainda corre o risco de ouvir: “você está atrasado, doutor, o mundo mudou, agora é medicina 5.0”.

A área da estética tornou-se o palco perfeito para esse espetáculo. É o território dos antes e depois, da foto com filtro, do “procedimento rápido, sem dor e com resultado imediato”. E aí começam a aparecer “especialistas” que nunca passaram nem perto da profundidade necessária de anatomia, farmacologia ou fisiopatologia, mas que aprenderam, em um fim de semana, a fazer procedimentos invasivos, mexendo em vasos, nervos e tecidos como se estivessem decorando um roteiro de teatro. De repente, todo mundo injeta, preenche, congela, dissolve, corrige… com a convicção inabalável de quem domina o assunto – até dar errado.

E quando dá errado, não é só o rosto que entorta; é a lógica toda do sistema. A complicação cai no colo de quem tem formação de verdade, de quem sabe o que é um trombo, uma necrose, um choque séptico. Aquele que não ganhou nada com o “pacote de harmonização” é chamado às pressas para tentar salvar o que sobrou, às vezes literalmente a vida do paciente. Estamos vivendo a era do “faço o que é lucrativo, você resolve o que der problema”.

No meio disso, uma palavra ganhou status de amuleto de vendas: protocolo. Antes, protocolo era algo sustentado em evidência, construído com estudo, revisado à luz de novas pesquisas. Agora, virou desculpa para pedir uma bateria de exames, muitas vezes desnecessários, e receitar combo de fórmulas manipuladas que parecem mais poção mágica do que tratamento sério. O paciente chega com uma queixa simples e sai carregando uma lista de exames de três páginas, mais uma sacola de cápsulas coloridas com nomes pomposos. Se perguntar o porquê, a resposta é rápida: “faz parte do protocolo”, como se isso fechasse qualquer discussão.

Outro termo que ganhou roupagem de marketing é “tratamento individualizado”. Na teoria, significa olhar para a pessoa, sua história, seu contexto, seus riscos e necessidades específicas. Na prática, em muitos lugares, virou apenas um slogan simpático no site da clínica. O paciente entra, passa por uma avaliação relâmpago, é encaixado em um dos três ou quatro pacotes que a casa oferece, todos com nomes criativos, e pronto: eis o “tratamento sob medida”. A única coisa realmente individualizada é o código do cartão e o número de parcelas. No mais, todo mundo recebe praticamente a mesma sequência de exames, as mesmas fórmulas manipuladas, o mesmo discurso pronto.

E não podemos esquecer do glorioso “Instituto”. Tradicionalmente, instituto remete a pesquisa, estudo sério, produção de conhecimento. Hoje, muitas vezes, é apenas uma palavra bonita no letreiro, colocada ali para dar aquele ar de autoridade. Tira-se “Clínica X”, põe-se “Instituto X de Saúde Integrada” e, de repente, parece que brotou um centro de referência internacional. O prédio é o mesmo, a equipe é a mesma, o conteúdo científico é questionável, mas a percepção do público muda – e isso basta para atrair mais gente. A embalagem subiu de nível, ainda que o conteúdo continue raso.

Somado a tudo isso vem a invasão de competências. Profissionais não médicos realizando atos tipicamente médicos, muitas vezes sem base anatômica e fisiológica suficiente; e, dentro da própria medicina, especialidades se atropelando, como se tudo fosse território livre. O sujeito resolve que “gosta de estética” e passa a operar fora da sua área de formação específica, oferecendo procedimentos complexos com o argumento de que “todo médico pode fazer tudo”. Pode até poder legalmente em alguns contextos, mas isso não significa que deva, nem que seja seguro, muito menos ético.

De outro lado, também é verdade que alguns médicos desprezam o papel dos outros profissionais da saúde, como se fossem meros coadjuvantes. Isso alimenta ressentimentos, narrativas de “empoderamento” descoladas da realidade técnica e a perigosa ilusão de que, com boa vontade e um curso online, qualquer um pode assumir funções para as quais não foi treinado. O resultado é uma terra de ninguém, em que o paciente tenta adivinhar quem realmente pode ajudá-lo, enquanto o sistema se torna cada vez mais confuso e fragmentado.

No fundo, o grande motor dessa bagunça tem nome e sobrenome: ambição desmedida. Ganhar bem pelo próprio trabalho não é errado; errada é a lógica de que tudo é justificável em nome do faturamento. A tentação de aumentar tíquete médio, vender pacotes, “fidelizar” o paciente a qualquer custo vai corroendo valores que deveriam ser inegociáveis. A medicina passa a ser gerida como um negócio qualquer, só que, ao contrário de vender celular ou roupa, aqui a mercadoria é o corpo e, muitas vezes, a vida das pessoas.

É claro que nem tudo é desgraça. Ainda há muita gente séria, profundamente comprometida com formação, com atualização constante, com respeito às fronteiras de competência. Profissionais que entendem que dizer “não faço isso” ou “isso não é da minha área” é sinal de maturidade, não de fraqueza. Médicos que preferem perder um procedimento do que correr o risco de prejudicar alguém. Instituições que realmente merecem o nome de instituto. Mas esses, muitas vezes, fazem menos barulho que os picarões e charlaretas de jaleco, que dominam a cena no feed de notícias.

O desafio, então, talvez seja resgatar o óbvio: medicina não é show, não é espetáculo, não é vitrine. É trabalho sério, cansativo, cheio de incertezas, que exige formação robusta, humildade para reconhecer limites e coragem para dizer “não” quando a moda do mercado aponta para o “sim”. Exige também respeito à equipe multiprofissional, com cada um atuando no escopo para o qual foi treinado, sem travestir ousadia de irresponsabilidade.

Enquanto isso não acontece, vamos convivendo com consultórios travestidos de instituto, protocolos que servem mais ao caixa do que ao paciente, tratamentos “individualizados” em série e uma multidão de profissionais ensaiando o papel de especialista sem ter passado pelos atos fundamentais da formação. No palco da saúde, as luzes ainda iluminam muitos bons atores, é verdade. Mas os picarões e charlaretas seguem disputando o protagonismo, na esperança de que o público não perceba que, por trás da maquiagem bonita, o texto científico é fraco e o enredo é perigoso.

No fim das contas, a verdadeira revolução não virá de mais um curso milagroso, nem de uma nova moda terapêutica, nem de um rebranding que transforme qualquer sala comercial em “Instituto Internacional”. Ela virá do simples, quase antiquado gesto de recolocar o paciente no centro, a ciência como base e a ética como linha vermelha. Até lá, sigamos atentos: em tempos de espetáculo, desconfiar é também um ato de cuidado. E, entre picarões e charlaretas, quem realmente merece confiança é justamente quem não tem medo de dizer: “eu não sei”, “isso não é da minha área” ou “isso não tem evidência suficiente para eu fazer em você”.